Percalços & percursos na legitimação da literatura digital brasileira

Lara Utzig
6 min readNov 21, 2020

Ao se considerar que as formas de produção e circulação literárias incidem em novos modelos de inscrição, leitura e valoração da literatura (ROCHA, 2016), em um esforço por parte do leitor (AARSETH, 1997), o que demanda caminhos que vão além de apenas passar páginas (GAINZA, 2016, p. 236; ROCHA, 2020), Hayles (2008) conceitua a literatura eletrônica como aquela que exclui a literatura impressa digitalizada, como é o caso de livros escaneados, por exemplo; sua característica primordial é de ter ‘nascido digitalmente’, no sentido de ter sido criada em um computador geralmente feita para ser lida em computador também. E para Gainza (2016), literatura digital é a experimentação com o código:

Se refere a um tipo de escrita e textualidade criada para ser lida na tela de um dispositivo eletrônico. Nesse sentido, […] não estamos falando de textos impressos digitalizados para leitura em formato digital, que geralmente obedecem ao formato de e-book. […] Ao contrário, a literatura digital aponta para uma experimentação com a linguagem […], uma escrita em código que se desdobra na forma de textos escritos, imagens, animações e sons, que, na grande maioria dos casos, estão dispostos em formas não lineares (GAINZA, 2016, p. 235–236. Grifos meus[1]).

Gainza foca em diferenciar as potencialidades multimodais proporcionadas pelo computador. Já Rocha (2020) se debruça sobre as particularidades da literatura digital brasileira, destacando as características de um país latino-americano, periférico, que passou por um processo de colonização e está à margem do desenvolvimento tecnológico em comparação às grandes potências. A pesquisadora chama atenção para a possibilidade de experimentação com o meio, uma vez que o artista digital nem sempre possui amplo conhecimento de programação para manipular o código com plena proficiência:

A definição proposta por Gainza tem o mérito de prever uma importante especificidade das criações digitais brasileiras recentes, que podem ser analisadas à luz do que Leonardo Flores (2017) identifica como a 3a geração da literatura digital, aquela que se caracteriza pelo aproveitamento de interfaces já estabelecidas, caracterizadas pelo grande número de usuários, como as redes sociais, p. ex. Isso porque, na definição da estudiosa, distinguem-se as obras que experimentam com o código, criando, simultaneamente à obra, a plataforma/programa que lhe dá formalização material, das obras que fazem uso de plataformas de uso massivo, que não foram criadas com finalidades estético/literárias, mas que são apropriadas e “desprogramadas” pelos autores que, ao fazê-lo, também reconfiguram os gêneros literários estabelecidos pela cultura impressa. A pertinência da distinção está relacionada com o fato de que em países em desenvolvimento, como o Brasil, em que a educação digital se dá informalmente e se limita ao uso das ferramentas, uma vez que a desigualdade no acesso a equipamentos e à formação especializada é enorme, o não reconhecimento desse uso criativo inviabilizaria o reconhecimento de grande parte da produção literária digital desses países (ROCHA, 2020, p. 83–84. Grifos meus).

Ao considerar a natureza passageira de obras digitais, que podem sair do ar e desaparecer a qualquer momento. Debray (1993, p. 229) questiona: “como fazer memória com aquilo que é fugitivo? Como dar longevidade ao que é efêmero”?

Beiguelman (2017) problematiza a falta de retrospectiva da internet, permeada por links que expiram em error 404 — página não encontrada. Fics vêm e vão e são deletadas dos sites sem aviso prévio. Imagens são retiradas do ar. Essa é uma realidade volátil das produções dispostas e dispersas no ciberespaço, em geral.

Trata-se portanto de uma arte intrinsecamente ligada a uma fruição do/em trânsito. Obras que só se dão a ler enquanto estiverem em fluxo, transmitidas entre computadores e interfaces diversas. Do ponto de vista da criação, essas condições implicam lidar com uma estética do imponderável e do imprevisível e pensar em estratégias de programação e publicação que tornem a obra legível, decodificável, sensível. Do ponto de vista da preservação, essas mesmas condições impedem a possibilidade de manutenção da obra no seu todo, haja vista que o contexto que as modelizava […] é irrecuperável (BEIGUELMAN, 2017, p. 26).

Ao lidar com as perdas e ganhos do registro na internet, entende-se que não será possível recuperar integralmente os vínculos e acessos possíveis, uma vez que, com o passar dos anos, alguns redirecionamentos já se encontram indisponíveis. Então estabelece-se a problemática deste tipo de literatura: como legitimar o que acaba? Como premiar uma materialidade tão evanescente?

O papel do prêmio literário como estratégia de consagração de uma obra é indiscutível. Para exemplificar, o Jabuti, em 2015, criou (a já extinta) categoria de Livro Infantil Digital. Seguem trechos do edital:

3.19 INFANTIL DIGITAL

O Prêmio Jabuti 2016 aceitará inscrições de livro digitais, compostos por textos literários destinados ao público infantil, que

3.19.1 Possuam conteúdo textual integrado a elementos multimídia, interativos e hipertextuais.

3.19.2 Disponham de capa (ou tela inicial) com o título do livro digital e acesso direto aos diferentes conteúdos

3.19.3 Junto com a ficha de inscrição, o responsável por inscrever o livro digital nesta deverá fornecer o link para acesso o mesmo, acompanhado de login e senha válidos.

3.19.3.1 A CBL não se responsabiliza pela desclassificação de um livro digital caso a senha enviada não permita acesso integral e livre a ele em máquinas de uso corrente no Brasil.

3.19.3.2 Os livros digitais não concorrem a livro do ano ficção

3.19.3.3 Excepcionalmente, livros digitais inscritos nesta categoria estão isentos de apresentação da ficha catalográfica e ISBN (CÂMARA apud RIBEIRO, 2018, p. 122–123).

De acordo com o certame, a obra deve ter a presença de multimídia, interatividade e hipertextualidade, o que claramente dialoga com uma concepção de literatura digital proposta por Gainza anteriormente, por exemplo. No entanto, a categoria gerou polêmica justamente pelo conceito em formação do que pode ou não ser considerado dentro do eixo de experimentação com o código e o meio, uma vez que estas noções ainda não estão completamente pacificadas para a avaliação ocorrer sem instabilidades. Tanto que o texto deste item foi retificado várias vezes. O resultado dos candidatos do ano em questão foi o seguinte:

Em 2015, a obra que conquistou o primeiro lugar foi Meu aplicativo de folclore, do autor Ricardo Azevedo, publicado pela editora Ática; o segundo lugar foi Via Láctea de Olavo Bilac, de Samira Almeida e Fernando Tangi, pela editora Storymax; e, em terceiro lugar, o Flicts, do autor, já consagrado, Ziraldo, pela editora Melhoramentos e Engenhoca (PACHECO, 2020, p. 105–106).

Apesar de haver uma certa preocupação surgindo, no intuito de dar visibilidade aos novos suportes de inscrição literários, o em-curso gera desconforto por ser movediço. Até mesmo as nomenclaturas demonstram a falta de familiaridade: e-lit, ciberliteratura, net-arte, literatura digital?

Assim, o impresso continua sendo o foco do tratamento editorial e o mais importante foco das premiações. Não há imprecisão nem confusão no físico, com ISBN, ficha catalográfica e todas as características já consolidadas. Não há insegurança em definir o que constitui ou não o livro, como ocorre na emergência da literatura digital. Na dúvida? Melhor tirar. A partir de 2018 já não tem mais.

REFERÊNCIAS

AARSETH, E. J. Cybertext: perspectives on Ergodic Literature. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1997.

BEIGUELMAN, G. Museus do inacabado para memórias efêmeras: notas sobre a conservação de obras de net art. Museologia & Interdisciplinaridade. v. 6, n. 12, jul./dez. 2017. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/16328/14616. Acesso em 13 nov. 2020.

DEBRAY, Régis. Curso de midiologia geral. Petrópolis: Vozes, 1993.

GAINZA, Carolina. Literatura en digital: mapas, estéticas y conceptualizaciones. Revista chilena de literatura. N. 96, 2016, p. 233–256. Disponível em: https://revistaliteratura.uchile.cl/index.php/RCL/article/view/44987. Acesso em: 9 nov. 2020.

HAYLES, K. Electronic Literature: new horizons for the literary. Notre Dame: University of Notre Dame, 2008.

PACHECO, LAURA NOGUEIRA. O livro como legitimador da literatura. In: REALITY SHOW LITERÁRIO: as condições de produção do romance Os Anjos de Badaró. UNESP (Dissertação de Mestrado): ARARAQUARA — SP, 2020.

RIBEIRO, Ana Elisa. Livro: Edição e tecnologia no século XXI. Belo Horizonte: Moinhos; Contafios, 2018.

ROCHA, Rejane C. “Monstro esperançoso”: a respeito de Oratório, de André Vallias. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 47, p. 157–184, 2016. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10096/8922. Acesso em: 12 nov. 2020.

______. Literatura Digital. In: RIBEIRO, A. E.; CABRAL, C. A. (org.). Tarefas da edição: pequena mediapédia. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2020.

[1] Tradução disponibilizada por Taciana Gava Menezes no corpo do artigo de conclusão de iniciação científica (IC) Literatura digital brasileira: remidiação e especificidades (2020).

(Reflexões sobre a disciplina Literatura e Mercado Editorial do PPGLIT/PPGL UFSCar, 2020)

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Lara Utzig

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