O caráter folhetinesco da fanfiction: fragmentação e serialização
A ascensão do formato do folhetim traça um caminho estreitamente ligado a diversos marcos históricos, como o surgimento e a solidificação da classe burguesa e o fortalecimento da imprensa, advento tecnológico fruto de uma Revolução Industrial que, através das máquinas, consolidou os trabalhos jornalístico e literário. Nesse mundo em (trans)formação, pautado em um modelo capitalista já bem estabelecido, é que o folhetim surge nas páginas de jornais franceses em meados do século XIX, mas ainda de maneira pouco definida, pois “os atributos que identificam o gênero folhetinesco não nascem prontos. São construídos dia a dia através das páginas dos jornais” (DINIZ, 2009, p. 78)[1].
Entretanto, já ia se desenhando essa característica principal que consiste na fragmentação episódica da narrativa, tática de venda que visava garantir a assiduidade de assinaturas. A partir daí, portanto, começa a tensão da relação literatura e mercado, uma vez que a história publicada também precisava seguir protocolos de leitura que deixassem a narrativa em uma sequência de capítulos, cuja periodicidade era rentável tanto ao suporte de divulgação quanto ao próprio escritor. O folhetim foi se tornando, assim, um produto direcionado ao consumo cultural popular, inserido cada vez mais em um contexto socioeconômico com a responsabilidade de gerar lucros. O grande desafio reside na ambiguidade de “encobrir e descobrir […] sua duplicidade de objeto cultural e mercadoria” (CHALMERS, 1985, p. 139).
Bentes, Koch e Nogueira (2003) categorizam três principais movimentos de recepção, presentes na elaboração de folhetins: “o dispositivo da fragmentação da leitura, o da sedução e o da produção do reconhecimento” (p. 272), ou seja, há uma inserção e interação com o leitor, que se sente participante e envolvido por se enxergar na ficcionalização do cotidiano ali representado, uma vez que “queria algo ligado a seu cotidiano, desejava reconhecer a própria história romanceada, o que propiciou o desenvolvimento de uma literatura que viesse ao encontro do anseio de evasão desse público” (CAVALCANTE, 2005, p. 68).
Nessa perspectiva, “o folhetim adula o interesse do leitor, estabelecendo uma espécie de cumplicidade na satisfação dos desejos despertados pela narrativa” (CHALMERS, 1985, p. 136). Tal contorno de reprodução foi alvo de críticas: debates sobre a qualidade do gênero e seu perfil de “literatura de massa” (CONVERSANI; BOTOSO, 2009, p. 176); nesse sentido, para muitos, o folhetim foi “acusado de ser um produto […] comercial, sem muitas pretensões literárias, […] subliteratura. Por adotar uma linguagem fácil, padronizada e com enredos repetidos, é menosprezado e carrega o estigma de apenas entreter, sem estimular o desenvolvimento intelectual do público” (DINIZ, 2009, p. 90). Ao longo dos anos o folhetim vai se modificando de acordo com os veículos de comunicação; radionovela, telenovela, webséries.
Nessa interface, cabe pensar também a respeito de novas estratégias de veiculação, recepção e leitura de tal material. Sob o aspecto formal, entende-se que o gênero fanfiction não necessariamente deriva, mas possui intersecções e é influenciado pela tradição do folhetim. Por serem gêneros nascidos em situações e eras deveras diferentes (um é fruto da cultura impressa e outro ganhou força através da cultura em contexto digital), não existe um processo de remediação, entretanto, há muitas práticas que se assemelham em ambos os casos, por exemplo:
⇨ difusão paulatina e gradual de capítulos: obviamente existem duas experiências possíveis (de ler tudo ao final, de uma só vez, ou observar a frequência de atualizações). De qualquer maneira, muito frequentemente há um agendamento pré-determinado para divulgação, e isso varia de caso em caso (uma vez por semana, quinzenalmente, e assim por diante).
⇨ aproximação com o leitor: os feedbacks acontecem em tempo real a cada nova postagem. Não raramente, a opinião da comunidade molda o desenvolvimento da história, e o(a) ficwriter redireciona os caminhos da narrativa de acordo com o retorno do fandom.
⇨ construção narratológica de retomadas e antecipações: há também a camada estrutural e textocêntrica que situa o leitor através de flashbacks e flashforwards, o que garante certa orientação para relembrar o que já aconteceu ou ainda irá acontecer. Quando não estão no capítulo em si, é comum a presença de disclaimers (cabeçalhos/paratextos utilizados pelo(a) ficwriter para se comunicar diretamente com o público antes de iniciar a leitura em si).
⇨ ganho de capital simbólico pelo reconhecimento da comunidade: tanto o folhetim, no passado, atuou como forma de legitimação de escritores (que também eram jornalistas) ao longo do tempo, cujas narrativas puderam se tornar romances (vale lembrar que, no Brasil, escritores como Machado de Assis, José de Alencar e Nelson Rodrigues publicavam regularmente em jornais sob heterônimos), quanto a fanfiction também possibilita essa consolidação do produtor diante de seus consumidores dentro e fora do microcosmos fandom.
Mudam-se as materialidades, suportes de inscrição, público-alvo, mas nos dois casos são mídiuns que cativam leitores fiéis que acompanham em busca de (des)continuidades.
REFERÊNCIAS
BENTES; A. C.; KOCH, I. G. V.; NOGUEIRA, C. M. A. Gênero, mídia e recepção: sobre as narrativas televisivas e seus espectadores. Cad. Est. Ling., Campinas, v. 44, pp. 265–282, Jan./Jun. 2003. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/118768/1/ppec_8637081-6822-1-PB.pdf. Acesso em 06 out. 2020.
CAVALCANTE, M. I. Do romance folhetinesco às telenovelas. OPSIS — Revista do NIESC, v. 5, pp. 63–74, 2005. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/Opsis/article/view/9407/6483. Acesso em 06 out. 2020.
CHALMERS, V. M. A Literatura fora da lei: um estudo do folhetim. Coleção Remate de Males, Campinas, v. 05, pp. 135–144. 1985. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636363/4072. Acesso em 05 out. 2020.
CONVERSANI, Â. A. B.; BOTOSO, A. Do romance-folhetim às minisséries e telenovelas. Iluminart: Sertãozinho, v. 1, n. 3, pp. 175–185, dez. 2009. Disponível em: http://revistailuminart.ti.srt.ifsp.edu.br/revistailuminart/index.php/iluminart/article/view/53/55. Acesso em 01 mai. 2019.
DINIZ, J. A. A recriação dos gêneros eletrônicos analógico-digitais: radionovela, telenovela e webnovela. Tese (Doutorado em Comunicação Social) — Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, 2009.
UTZIG, I. L. A. Da série ao ciber: o folhetim transmídia Desapaixonante, de Marvin Cross. Caderno de Letras: Pelotas, n. 36, jan.-abr. (2020). Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras/
[1] O início desta reflexão foi parcialmente publicado no artigo Da série ao ciber: o folhetim transmídia Desapaixonante, de Marvin Cross, de minha autoria. Referências ao final do texto.
(Reflexões sobre a disciplina Literatura e Mercado Editorial do PPGLIT/PPGL UFSCar, 2020)