Mídium & Materialidade(s) na/da Literatura Digital
“O suporte é, talvez, o que se vê menos e o que conta mais” (DEBRAY, 1993, p. 207).
A concepção de materialidade está frequentemente relacionada ao sólido, ao palpável, ao que é sensível e tangível. Na era da cibercultura e da cultura digital, há uma certa tendência à naturalização da virtualidade como sinônimo de imaterialidade, talvez porque haja um alto grau de abstração ao se tratar de novas mídias.
Para Régis Debray, o mídium é um conjunto de técnicas dos meios simbólicos de transmissão e circulação de ideias. Então circunscreve-se a seguinte interrogação: “através de que mediações uma ideia se torna força? De que maneira uma palavra pode tornar-se acontecimento?” (p. 97). Para o teórico, a dicotomia outrora gritante entre forma x conteúdo se torna uma discussão com pouco espaço, pois o avanço da tecnologia ocasionou a suposta “desmaterialização” dos suportes de inscrição:
“em suma, nas transmissões eletrônicas de nossos dias, o próprio suporte desaparece, confundido com o dado transmitido” (1993, p. 222).
No caso específico da literatura digital, logo à primeira vista o que se destaca é a metamídia computador (LEVY, 1999), como a máquina que armazena as possibilidades multimodais que são, muitas vezes, características da poética digital.
Ou seja, é comum pensar o texto literário sendo escrito, armazenado e lido no computador; não é tão comum pensar que o computador (aqui uma metonímia para a linguagem informática) possa contribuir para a criação de uma estética específica para o literário (ROCHA, AMÂNCIO, 2019, p. 124).
No entanto, Claudia Kozak (2019) apresenta outras alternativas para pensar as materialidades dessa literatura, em um olhar além-físico:
Existe ya cierto consenso en la crítica de literatura digital en relación con no reducir la materialidad de esta literatura a sus efectos perceptibles de superficie — visuales, sonoros, táctiles — , sino incorporando también la indagación en relación con la materialidad del código informático en sus aspectos visuales y formales, acoplada a las diferencias de voltajes referidas por Parikka y, también, la materialidad misma del hardware.
Recuperando as noções de materialidade textual de superfície, materialidade relacional das interfaces tanto de software como de hardware e materialidade de código propostas por Bouchardon; Glazier, bem como a respeito de materialidades sujas relembradas por Parikka (que pondera que todos os dispositivos eletrônicos possuem minerais e elementos químicos necessários para sua produção), Kozak (2019) evidencia os tipos de materialidades existentes, que são diferentes da cultura impressa, mas que deixam latente uma “necessidade legítima de deslocar o exame dos textos para o das diferentes práticas de leitura” (DEBRAY, 1993, p. 176).
Essa mudança de paradigma em que o leitor é capaz agir ativamente para modificar as materialidades e a linguagem é denominada por Carolina Gainza como hackeio cultural, em que:
la escritura se vuelve performática porque la literatura digital es expresión de la ejecución de un código, el cual es activado por un sujeto, frente al cual se despliegan una serie de textualidades que interactúan con él/ ella (2016, p. 236).
Considerando todas essas questões, resta problematizar: quais ideias são construídas e transmitidas pela literatura digital, a partir de um mídium pautado na interatividade e na inteligência coletiva?
REFERÊNCIAS
DEBRAY, Régis. Curso de Midiologia Geral. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
GAINZA, Carolina. Literatura chilena en digital: mapas, estéticas y conceptualizaciones. Revista Chilena de Literatura, Diciembre 2016, n. 94, p. 233–256. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/pdf/rchilite/n94/art12.pdf. Acesso em 14 set. 2020.
KOZAK, Claudia. Poéticas/políticas de la materialidad en la poesía digital latinoamericana. Perífrasis. Revista de Literatura, Teoría y Crítica, n. 20, 2019, p. 71–93. Disponível em: https://revistas.uniandes.edu.co/doi/full/10.25025/perifrasis201910.20.04. Acesso em 13 set. 2020.
LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: 34, 1999.
ROCHA, Rejane Cristina; AMÂNCIO, Nair Renata. A compreensão e a legitimação da literatura digital brasileira: o caso da revista Texto Digital. Texto Digital, Florianópolis, v. 15, n. 1, p. 123–136, jan./jun. 2019. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/textodigital/article/view/1807-9288.2019v15n1p123/40643. Acesso em 14 set. 2020.
(Reflexões sobre a disciplina Literatura e Mercado Editorial do PPGLIT/PPGL UFSCar, 2020)