Fanfiction, livro impresso & capital simbólico

Lara Utzig
4 min readSep 24, 2020

Vários escritores publicados são oriundos do mundo das fics. Muito provavelmente, um dos casos mais famosos foi Cinquenta Tons de Cinza. O best-seller de E. L. James inicialmente era uma fic da saga Crepúsculo. Sob o pseudônimo de SnowQueens Icedragon, James postou a história (denominada Masters of the Universe) no portal Fanfiction.Net e, graças ao alcance atingido, houve uma retirada do conteúdo do ar, perpassando uma revisão para o lançamento do livro (RECUERO, 2015).

É difícil saber ao certo quantas histórias começaram sendo fic e depois foram modificadas para conseguir contratos (tal estratégia conhecida como “raspar o número de série”, no intuito de evitar conflitos legais).

Murakami (2016, p. 80) questiona essa situação: “o texto costumava ser uma fanfic, mas ainda pode ser considerado uma”? A maioria das fics que ingressam no mercado editorial, como o exemplo de Cinquenta Tons de Cinza, são tradicionalmente normativos. Kara Braden, produtora de The Longest Night (2014), explicou em seu Tumblr que modificou o relacionamento lésbico central e transformou-o em hetero. Essa alteração no texto, oriunda de negociações com as editoras, demonstra o que acontece no processo de deslocamento. Jamison (2017, p. 277) expõe, enfim, a problemática da fic:

“a função social, literária e política da fanfiction é que as pessoas […] contam as histórias que querem contar, sem pré-censura […], mesmo que […] não constituam um mercado valioso. É este valor que está sendo ameaçado pela comercialização da fic”.

Antoniolli (2018, p. 196) chama de “osmose” esse mecanismo e cita que, para Bacon-Smith, existe uma impossibilidade de fazer uma distinção clara entre produtores de ficção comercial e fãs produtores de fic porque a profissionalização destes últimos não é rara. Antoniolli (2018) compreende a aproximação entre fic e romances e critica que para se obter aproveitamento de tal afinidade haja apagamento do passado da obra enquanto fic que é justamente uma maneira de publicar a produção fã sem comprometimento legal. O questionamento: “ainda é fic?” encontra diferentes feedbacks, dependendo do público. Como a história está em outro circuito de circulação, será acessada tanto pelos leitores do fandom, que acompanharam a distribuição neste ambiente, quanto pelos consumidores da obra enquanto romance, que muitas vezes ignoram o contexto de origem da narrativa. Para o fã-do-fã, cujo contato está com a história está sendo apenas ampliado na aquisição do livro físico, talvez sempre se constitua como fic. Percebe-se então uma subjetivação como resposta à pergunta posta, cuja interpretação, inevitavelmente, perpassa a recepção.

Bourdieu (2001) amplia a ideia de capital para além da teoria econômica, cuja tendência é encarar intercâmbios sociais não pecuniários de maneira “desinteressada”. O fandom opera no nível do acúmulo de capital social que, para Bourdieu (2001), ampara-se no seio das relações de reconhecimento mútuo, através do pertencimento a determinados grupos “merecedores de crédito”, em uma concentração que possui efeitos multiplicadores. No intuito de acessar o capital econômico, estabelecem-se interconexões não-lineares e indissociáveis com a realidade editorial impressa. Por isso, a frequente concepção separatista entre os sistemas não se sustenta se aceitarmos que “estudar a cultura requer […] converter-se em um especialista das intersecções” (CANCLINI, 2004, p. 101, tradução nossa[1]). A respeito da presumida dicotomia entre produtor(a) de fic/escritor(a) reside o argumento de que ambos produzem ficção, mas só o último é de fato “remunerável”, uma visão um tanto quanto estática dessas funções.

A produção fã paira, assim, nessa realidade cíclica, paradoxal e flutuante: por ser uma cultura baseada no afeto pelo cânone, nasce pelo apreço. Os trabalhos transformativos enfrentam problemas com direitos autorais e para serem publicados são revisados e editados, o que acontece porque o mercado editorial não compreende o funcionamento e a dinâmica do fandom. Com isso, muitas vezes as fics são corrompidas ou deformadas por essa entidade externa (DE KOSNIK apud ANTONIOLLI, 2018). No entanto, simultaneamente, não é possível manter os termos do próprio fandom na comercialização das obras porque a natureza desse espaço é pautada na gift economy, prezando a liberdade total de criação. Assim, os sistemas se encontram e negociam, não há “externo”, a considerar que “todo o cultural (e literário) é econômico e todo o econômico é cultural (e literário)” (LUDMER, 2010, p. 2). O fandom, portanto, carrega suas especificidades, mas não é completamente independente.

REFERÊNCIAS

ANTONIOLLI, Claudia. Questions of Sexual Identity and Female Empowerment in Fan Fiction. Tese (Doutoramento em Língua e Literatura Europeia, Americana e Pós-Colonial) — Università Ca’Foscari, Veneza, 2018.

BOURDIEU, Pierre. Poder, derecho y clases sociales. 2. ed. Desclée de Brouwer: Espanha, 2001.

CANCLINI, Néstor. Diferentes, desiguales y desconectados: Mapas de la interculturalidad. Barcelona: Gedisa, 2004.

JAMISON, Anne. FIC: por que a fanfiction está dominando o mundo. Trad. Marcelo Barbão. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017.

LUDMER, Josefina. Literaturas pós-autônomas. Trad. Flávia Cera. Ciberletras, n. 17, jul. 2007. Disponível em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf. Acesso em 29 mai. 2020.

MURAKAMI, Raquel Yukie. O ficwriter e o campo da fanfiction: reflexão sobre uma forma de escrita contemporânea. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada) — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas: Universidade de São Paulo (USP), 2016. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-10042017-122630/publico/2016_RaquelYukieMurakami_VOrig.pdf. Acesso em 07 mai. 2020.

(Reflexões sobre a disciplina Literatura e Mercado Editorial do PPGLIT/PPGL UFSCar, 2020)

[1] No original: “Estudiar la cultura requiere, entonces, convertirse en un especialista de las intersecciones”.

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Lara Utzig

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