A desconstrução das noções de autoria & originalidade nos fandoms
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A superestima da originalidade[1] determina o ganho ou a perda de valor artístico de determinado bem cultural. Para Orlandi (apud CAMARGO, 2015), diferentes versões de um texto também se firmam como novos produtos de significados. Além disso,
[n]ada é novo; o novo é uma combinação de vários elementos do antigo, […] reorganizados para se adequarem a visões funcionais alternativas da literatura […] — na verdade, essencialmente o novo é ‘reunir as ideias de outras pessoas’, mas de forma a dar-lhes um novo impacto (LEFEVERE apud RIBEIRO, 2018, p. 58).
Lefevere (2007) fala da reescritura[2] como manipulação (ideológica) vital para a evolução literária, pois projeta a imagem do autor em outra cultura, elevando-o. O teórico argumenta que reescrituras afetam a interpenetração de sistemas literários, também, através introdução de novos recursos no inventário de uma poética, modificando-o.
Ribeiro (2018, p. 60–61) resgata o termo refração, proposto por Lefevere em 1982: “adaptações de uma obra literária para um público diferente, com a intenção de influenciar a maneira como esse público lê a obra em questão”. Em suma, a fanfiction, como reescrita (ou refração), segue tal premissa: projeta, ressignifica, altera o material-fonte, levando-o para um nicho diferenciado de consumidores e compõe seu arquivo, até quando exerce papel de contestação. Como percebe Camargo (2015, p. 76), “as fanfics também são produção em que se reverbera o discurso do outro”.
A problemática da produção fã relacionada à quebra de direitos autorais também está diretamente ligada ao lucro e à originalidade. Nessa interdependência de fatores, graças à referida romantização da ideia de autor-como-proprietário, gênio em um pedestal, há quem seja terminantemente contra a obtenção de lucros provenientes das produções fãs, então possuem uma previsão escatológica de que isso levará ao fim do fandom (JAMISON, 2017), cuja premissa básica é: compartilhar. “A marginalização advém também das questões legais do Copyright. A fanfiction está inserida nos termos do Copyright enquanto Fair Use, especificamente referida como Transformative Works. Não tem fins lucrativos e abertamente assume que é criada a partir de um outro texto” (CABRAL, 2020, p. 30). A Organization for Transformative Works (OTW), na sessão de perguntas, discute a questão do copyright sob a ótica dos trabalhos transformativos:
Copyright existe para proteger o direito de criadorxs lucrarem com seu trabalho por um período de tempo, para encorajar o empenho criativo e a difusão do compartilhamento de conhecimento. Mas isso não impossibilita o direito de outrxs responderem à obra original com comentários críticos, paródias, ou, acreditamos, obras transformativas[3].
Tal mudança de paradigma na outrora absolutista concepção de autor se instala como estética da reciclagem (KLUCINKAS; MOSER, 2007), proporcionada pela imersão nas novas mídias. Os teóricos apresentam que reciclagem, enquanto procedimento, tem se firmado como prática cultural sob diversos nomes (revival, remake, sampling, copy-art). Essa “retomada dos detritos” afasta o antagonismo entre cópia x criação. Sobre isso, Canclini (2008) expõe que a estética de ruptura foi deixada de lado na pós-modernidade, que cada vez mais explora usos de citação e paródia do passado em vez do ineditismo por si mesmo, uma vez que a própria noção de criatividade passa a ser compreendida como a capacidade de manipulação dos recursos de maneira incomum. A fic encontra lugar, portanto, dentro dessa ressignificação nascida da citação/paródia do passado.
Trata-se de uma revolução “que permite que milhares de pessoas com renda média possam se tornar produtores de suas […] imagens, […] mensagens, […] sites na internet […] sem sair de casa (SANTAELLA, 2005, p. 59). Como questiona Lévy (2010, p. 123):
“quando já não há ‘um’ sentido da história, mas […] pequenas proposições lutando por sua legitimidade, como organizar a coerência dos eventos onde se encontra a vanguarda? Quem está à frente? […] O que é o universal”?
REFERÊNCIAS
CABRAL, Diana Maria Capela. Fanfiction — Novas formas de produção e consumo literário. Tese (Doutoramento em Literatura) — Universidade de Évora: Portugal, 2020.
CAMARGO, Ana Rosa Leme. Escrita no espaço digital — criação e atribuição de autoria em fanfictions. Dissertação (Mestrado em Linguística) — Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), 2015. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/8099/DissARLC.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 11 mai. 2020.
JAMISON, Anne. FIC: por que a fanfiction está dominando o mundo. Trad. Marcelo Barbão. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017.
KLUCINSKAS, Jean; MOSER, Walter. A estética à prova da reciclagem cultural. Trad. Cleonice Mourão. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 11, n. 20, p. 17–42, 1 sem. 2007. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/14019/11018. Acesso em 18 jun. 2020.
RIBEIRO, Luciana da Silva. Fanfiction: reescritas arcônticas. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC), 2018. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=35284@1. Acesso em 24 abr. 2020.
SANTAELLA, Lucia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005.
UTZIG, Ingrid Lara de Araújo. Reescritas na contemporaneidade: fanfiction & cultura remix. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS): Primeira Escrita, v. 7, n. 2, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/revpres/issue/view/618/426. Acesso em 16 out. 2020.
(Reflexões sobre a disciplina Literatura e Mercado Editorial do PPGLIT/PPGL UFSCar, 2020)
[1] Neste texto, não será utilizado o adjetivo original, pois quando não se identifica uma suposta originalidade, há uma tendência ao desmerecimento. Como conclui Ribeiro (2018, p. 58), “ofuscamos aquilo que tradicionalmente acabamos por não identificar como ‘original’, e, como resultado, não o investigamos ou damos importância ao seu valor”. A opção adotada será chamar de material-fonte.
[2] A discussão aqui presente foi parcialmente publicada no artigo Reescritas na contemporaneidade: fanfiction & cultura remix, divulgado no ano de 2020 pela revista Primeira Escrita, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Vide detalhes da ficha catalográfica nas referências.
[3] Disponível em: https://www.transformativeworks.org/perguntas-frequentes/?lang=pt-br.